ENTREVISTA AO INSTITUTO
DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO

 

INSTITUTO DOS ADVOGADOS – Professor Reale, como supervisor da Comissão Revisora e Elaboradora do Código Civil, que conselhos dá aos futuros aplicadores da nova Lei?

MIGUEL REALE – Não se muda de Código Civil como se troca de roupa. Há necessidade de uma prévia adaptação, o que explica a longa duração da vacatio legis. Entre um e outro sistema de direito há certa continuidade temporal, havendo normas do Código de 1916 que foram preservadas, mas maior é o número de disposições que vieram dar novo sentido à legislação, com repercussão geral em nosso ordenamento jurídico.

         A primeira sugestão que faço é no sentido de um estudo comparativo dos dois códigos, a fim de não se perder o valiosíssimo cabedal de doutrina acumulado nos oitenta e cinco anos de aplicação da antiga Lei.

INSTITUTO DOS ADVOGADOS – Como é que foi alcançada a unidade do novo Código, uma vez que ele foi obra de seis colaboradores?

MIGUEL REALE – Efetivamente, enquanto que os projetos de Código Civil anteriores foram redigidos inicialmente por um único jurista, como é o caso de Clovis Bevilaqua e Orlando Gomes, eu preferi distribuir a matéria entre os membros da Comissão, nomeada a 23 de maio de 1969, cabendo a Parte Geral ao Ministro José Carlos Moreira Alves, o livro das Obrigações a Agostinho de Arruda Alvim; o das “atividades negociais”, depois denominada Direito de empresa a Silvio Marcondes; o Direito das Coisas a Erbert Chamoun; o de Família a Clovis do Couto e Silva e, por fim, o de Sucessões a Torquato Castro.

         No fim desse ano, recebi os projetos parciais, sendo necessário sistematiza-los em um todo orgânico. Essa foi a minha principal tarefa, realizada em 1970, quando ordenei unitariamente a matéria, evitando que houvesse conflito entre as diversas disposições legais, tendo sempre a preocupação de alcançar a necessária unidade lingüística exigida pelo projeto. Essa operação me custou vários meses de estudo, sem prejuízo, é claro, de propor modificações ou acréscimos que julgasse indispensáveis. Guardo com o maior carinho os papéis relativos à minha participação na composição unitária do Anteprojeto.

 

INSTITUTO DOS ADVOGADOS – Pode V.Sa. nos adiantar quais foram as suas mais relevantes contribuições?

MIGUEL REALE – Além da mencionada unidade de linguagem, minhas propostas – de modo geral acolhidas pelos demais membros da Comissão – visam a atender melhor ao princípio de socialidade, como se deu, por exemplo, na disciplina da posse, com o conceito de “posse-trabalho”, à cuja luz foi reduzido o prazo de aquisição da propriedade por usucapião, com terras ocupadas por possuidores que nelas constroem sua lavoura e sua morada.

         Minha outra constante preocupação foi no sentido de ficar bem assegurada a reparação do dano resultante de atos ilícitos, com a adoção da doutrina da “desconsideração da personalidade jurídica” (disregard personnality) oferecendo um texto que foi aproveitado pelos autores do Código do Consumidor. Aliás, este se inspirou, em mais de um passo, nas várias edições de nosso Anteprojeto de Código Civil. Outro ponto essencial refere-se à “responsabilidade objetiva”, que julguei necessário adotar.

 

INSTITUTO DOS ADVOGADOS – Costuma-se afirmar que o novo Código não teria sido objeto de mais ampla discussão.

 

MIGUEL REALE – É uma asserção manifestamente improcedente e injusta. Bastará lembrar que o Anteprojeto – com a redação resultante das observações formuladas por todos os membros da Comissão à vista de meu trabalho de sistematização – foi publicado pelo Ministério da Justiça, em 1972, para a apreciação crítica de todos os interessados. Foram, então, apresentadas numerosas objeções e sugestões por entidades de classe, por grande número de juristas e até mesmo por homens comuns.

         Em 1973, como resultado do exame das críticas recebidas, foi publicada a 2a edição do Anteprojeto, por sinal que acompanhada das exposições de motivos complementares redigidas por mim e demais membros da Comissão.

         Houve, assim, nova fase de apreciação crítica, aberta ao público, com novas alterações que culminaram no texto do Anteprojeto de 16 de janeiro de 1975, ao depois convertido no Projeto n° 634-E, enviado pelo Governo Federal à Câmara dos Deputados em junho deste ano.       

         Se houve, pois, um código publicamente discutido foi esse, cabendo salientar que os debates versaram sobre questões jurídicas, ao contrário do que aconteceu com o Código de 1916, quando prevaleceram problemas de linguagem.

 

INSTITUTO DOS ADVOGADOS – Tendo o Projeto do Código Civil sido enviado ao Congresso Nacional em 1975, os 32 anos decorridos não importaram em sua desatualização?

 

MIGUEL REALE – Essa é outra argüição inadmissível. Raciocina-se como se, durante essas décadas, não tivesse havido contínuos debates sobre novas questões de fato e de direito. As 1.063 emendas apresentadas na Câmara dos Deputados, muitíssimas delas repetidas, deram lugar a estudos de valor por parte dos relatores parciais, bem como a substanciais manifestações do plenário. A mesma coisa aconteceu com as 332 emendas oferecidas no Senado Federal. Cumpre-me realçar que o saudoso Senador Nelson Carneiro havia apresentado dezenas de emendas relativas ao Direito de Família, depois acolhidas pela Assembléia Nacional Constituinte, de maneira que elas facilitaram sobremaneira a adaptação do Projeto às inovações constitucionais sobre a igualdade absoluta dos cônjuges e dos filhos.

 

         Ademais, o Ministro Moreira Alves e eu, a convite do relator geral, Senador Josaphat Marinho, pudemos não só nos manifestar sobre as emendas apresentadas, como fazer novas sugestões, tal como se deu, no meu caso, no tocante a sociedade limitada e testamento particular.

 

         Tendo voltado o projeto à consideração da Câmara dos Deputados, nova fase de estudos se abriu, com a participação de vários juristas. Não houve, por conseguinte, oportunidade que se perdesse visando à atualização do novo Código.